Cartas Pedagógicas para Carolina Maria de Jesus
Cartas Pedagógicas para Carolina
Maria de Jesus
Em 2022 escrevi algumas cartas pedagógicas
para Carolina Maria de Jesus. Desejava contar para ela o que estava acontecendo no país e como sua vida e obra tem circulado os diferentes espaços da sociedade brasileira e internacional. Foram escritas à mão e depois digitadas.
Compartilho uma delas aqui. Alerto que não teve revisão de texto. Tá escrito do jeito que veio...
Carta:
Posse do Lula e o esperançar por dias melhores.
...O Brasil precisa ser dirigido
por uma pessoa que já passou fome.
A fome também é professora.
Quem passa fome aprende a pensar no
próximo, e nas crianças.
Carolina Maria de Jesus
Quarto de despejo – diário de uma
favelada
Querida
Carolina Maria de Jesus, vou te contar nas linhas abaixo minhas impressões
acerca do momento, ao mesmo tempo delicado e especial, que estamos vivendo atualmente.
Ficamos
quatro anos esperançando a chegada desse 1º de janeiro de 2023. Acho que
nesse dia 1º de janeiro você faria o que escreveu no seu best-seller, “Eu sou
muito alegre. Todas as manhãs eu canto. Sou como as aves, que cantam apenas ao
amanhecer. De manhã eu estou sempre alegre. A primeira coisa que faço é abrir a
janela e contemplar o espaço”.[1]
Assistimos
pela TV a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o Lula. Saca essa
Carolina, vai ser o 3º mandato dele como presidente. Foi no primeiro governo
dele em 2002 que ele tirou o Brasil do Mapa da Fome. Muitas famílias das
favelas vivenciaram recentemente a experiência de terem que se alimentar de
carcaças de ossos que eram doadas ou vendidas por açougues.
E
é disso que gostaria de contar nesta carta, afinal de contas, é desde 2016,
quando a primeira presidenta eleita, a Dilma Roussef, sofreu o golpe
político-jurídico-midiático que a tirou da presidência, assumindo o seu vice
Michel Temer, o golpista-mor, que a vida política e a sobrevivência do povo
pobre, Carolina, têm passado por maus bocados. Em 2018 a coisa piorou.
O
“bicho pegou” com o início do (des)governo que terminou agora.
Você
ficaria impressionada, como nós também ficamos, com o racismo e a falta de
educação e de respeito do ex-presidente para com as moradoras e os moradores
das favelas e periferias, com as trabalhadoras e os trabalhadores, sindicatos,
artistas, professoras, professores, mulheres, indígenas, quilombolas, pessoas
com deficiência e pessoas que hoje integram a comunidade LGBTQIAP+.
Cada
letra dessas, Carolina, representa um grupo de pessoas e sua orientação sexual,
ou seja, trata-se de um movimento político e social que
defende a diversidade e a busca de mais representatividade e direitos para essa
população. Esse nome demonstra a luta por mais igualdade e respeito à
diversidade. Essa sigla significa: Lésbicas, Gays, Bissexuais,
Transexuais, Queer, Intersexuais, Assexuais, Pansexuais,
e, o símbolo de +, aparece para incluir
outras identidades de gênero e orientações sexuais, que não se encaixam no
padrão cis-heteronormativo, mas que não aparecem em destaque antes do símbolo.
Para você ver como as coisas estão bem diferentes hoje em dia.
O
tal ex-presidente, que não merece nem ter o nome dele aqui na carta, agrediu
também as comunidades e terreiros que seguem as religiões de matrizes
africanas, estimulou invasões à hospitais em plena pandemia de Covid 19, a
primeira pandemia após aquela pandemia de gripe espanhola que você vivenciou
quando criança, e que ceifou a vida em 1918 do Dr. Eurípedes, o médico que
cuidou de sua saúde quando era criança em Sacramento.
Essa
pandemia, Carolina, trouxe muito medo, mortes, tristezas, desemprego e a volta
do nosso país ao Mapa da Fome, principalmente entre as pessoas das favelas, dos
quartos de despejos das cidades, das aldeias indígenas e dos territórios
quilombolas. A pandemia da Covid-19 atinge a todos, mas, os maiores números de
óbitos estão entre as populações pretas, pobres e indígenas, indicando o que
você já denunciava nos seus diários ao escrever, com outras palavras, sobre os
racismos cotidianos, estruturais e o racismo ambiental vivido pelos pobres e
favelados do país.
Esse ser abjeto, Carolina, levou a população a
desacreditar na ciência e nas vacinas contra o novocoronavirus, responsável
pela Covid-19, ele e seus aliados políticos, incluindo seus quatro filhos,
desrespeitaram jornalistas, repórteres, os juízes da Suprema Corte, a justiça,
a Constituição de 1988 que você não conheceu e a democracia. Não media esforços
para desqualificar os Direitos Humanos, que na sua época nem se ouvia falar.
Pessoas como ele, também desprezam a vida, a natureza, florestas, rios, mares e
as populações indígenas e quilombolas.
Carolina,
isso que disse acima me fez lembrar de um filósofo africano. Acho que você iria
gostar de conhecer e conversar, e seu avô também, o Sócrates africano, como
você chamava. Tô falando sobre o filósofo camaronês, Achille Mbembe. É que o
Achille questiona em seus estudos, os consensos universais entorno da
escravidão, da colonização e da negritude. Ele teve uma sacada de chamar de
“necropolítica” aquilo que representa o poder de decidir sobre quem deve viver
e quem deve morrer, de decidir sobre o corpo de alguém ou sobre os corpos de
uma população, principalmente dos povos e populações racializadas pela cultura
europeia dos colonizadores.
Voltando
à posse do Lula, fiquei pensando enquanto escrevo, na felicidade que seria de você
poder estar aqui também vivenciando esse momento histórico e comovente. Queria
ver a sua alegria com a posse do Lula, que é gente do povo, que já passou fome,
migrou para São Paulo vindo do interior do Nordeste, e que também não pode
estudar para trabalhar. Mas, o que estou te dizendo, é lógico que você está
aqui sim (Gargalhada), mas, de outro modo, e vou te contar aqui na carta isso
que tô te falando.
Carolina,
Bitita, você é semente. Como aquelas que semeava quando criança na lida na roça
com sua mãe, lá na fazenda Lajeado, em Uberaba. Quando você aprendeu que “a
terra é feminina, é a mãe da humanidade”.[2]
O
Lula disse que a vitória nas eleições e a posse dele foi uma vitória do povo
brasileiro e da democracia. Carolina, quero te contar como foi a posse dele
ontem lá no planalto central em Brasília. Esperei o dia de hoje para fazer isso
e foi uma sábia escolha ter esperado. Te digo por quê mais adiante.
A
posse do Lula foi uma emoção geral, principalmente quando soubemos e vimos a
faixa presidencial sendo entregue ao Lula por uma mulher, a Aline Souza, de 33
anos e com várias semelhanças com você, por ser uma mulher negra, mãe solo e
catadora de materiais recicláveis. Por isso que disse que você está aqui
conosco. Você deixou sementes e ouso dizer que
você intermediou a Aline quando ela pôs a faixa presidencial no Lula.
Carolina Presente!
Ela subiu a rampa do Palácio do Planalto na companhia de outras sete pessoas como forma de representar a diversidade da população brasileira. Essa decisão inédita numa posse presidencial só aconteceu devido a decisão do tal ex-presidente fugir pros Estados Unidos antes de terminar seu maldito mandato.
Carolina,
subiram na rampa, junto com a Aline, o casal presidencial, o Lula e a
Rosângela, a Janja como é conhecida e que é socióloga, o vice-presidente
Geraldo Alckmim – que já disputou eleições com o Lula e perdeu (rsrsr) - e sua
esposa Lu Alckmim. Estavam também, o cacique Kaiapó Raoni Metuktire nos seus 93
anos, reconhecido internacionalmente por defender a paz, a floresta Amazônica,
os povos e terras indígenas, a natureza...Carolina, curiosa, inteligente e
leitora voraz que sempre foi, deve ter ouvido falar dele quando no final da
década de 1950, ele acompanhou os irmãos Villas-Bôas numa expedição para
demarcar o centro geográfico do Brasil, nas margens do rio Xingú.
Subiram
também a rampa, o menino negro Francisco, 10 anos, morador da periferia de São
Paulo e esportista de natação. O artesão e ativista Flavio Pereira de 50 anos.
O metalúrgico Weslley Viesba Rodrigues de 36 anos. O professor Murilo de
Quadros Jesus de 28 anos, formado em Letras-Português. A Cozinheira Jucimara
Fausto dos Santos. O jovem ativista e influenciador da internet, Ivan Baron, de
24 anos, conhecido como influenciador defensor das políticas de inclusão de
pessoas com deficiência e estudante de Pedagogia.
Carolina,
podemos dizer que o amor venceu o ódio. Estamos agora nos vendo representado
enquanto povo brasileiro. O caminho não terminou e você sabe muito bem sobre
caminhar quando viveu um bom tempo andarilhando entre Minas Gerais e São Paulo,
até chegar na favela do Canindé com seus filhos José Carlos, João Carlos e Vera
Eunice. O Patrono da educação brasileira, Carolina, o Paulo Freire, que em 2021
completaria cem anos, traduziu bem o que estamos sentindo. Estamos num momento
de esperançar, por uma vida melhor com respeito à vida, ao próximo, ao
diferente. Por uma vida digna com saúde, educação, cultura, emprego, moradia,
lazer, alegria, amor, vacina no braço, e, comida no prato.
Novo
governo? Bem, para você e também para o Raoni, os povos indígenas, os negros e
negras, que há 523 anos lutam para resistirem, esse pode ser mais um governo,
por que suas lutas são cotidianas. De qualquer modo, Carolina, a Praça dos Três
Poderes em Brasília ficou lotada, com mais de 300 mil pessoas celebrando a
posse do Lula e o esperançar por dias melhores.
Diversas
caravanas de ônibus e carros foram para Brasília. A classe trabalhadora marcou
presença massiva, muitas famílias, estudantes, artistas, diversos povos
indígenas e quilombolas, trabalhadores e trabalhadoras rurais do MST -
Movimento de Trabalhadores Sem Terra, e do MSTS - Movimento de Trabalhadores
Sem Teto; assim como diversos outros movimentos sociais.
Essa
festa recebeu o nome de Festival do Futuro e contou com shows de diversos
artistas brasileiros. Os shows aconteceram em dois palcos, um deles batizado
com o nome de Gal Costa e o outro de Elza Soares, que faleceram recentemente.
Dentre os artistas que marcaram presença temos a Pablo Vittar, Valeska
Popozuda, Baiana System, Gaby Amarantos, Fernanda Abreu, Maria Rita, Martinho
da Vila (esse acho que conheceu), Teresa Cristina, Chico César, Geraldo
Azevedo, Odair José, Margareth Menezes, nossa Ministra da Cultura e que é
cantora, a filha do Gilberto Gil, Flor Gil, e muito mais...
A
posse e o festival viraram essa página de nossa história, fortalecendo a
democracia. O 1º de janeiro foi mágico, um sonho, por isso que eu quis tanto
escrever essa carta para você, compartilhando o que vivemos nos últimos anos,
que coincidem com o período que conheci um pouco sobre você, sua vida e sua
obra, e que você continua comigo e eu estou com você também.
Pois
é Carolina, queremos e estamos virando a página da história desses últimos anos
marcados pelos discursos de ódio, ameaças, pelos negacionismos contra a ciência
e pelas desinformações com as notícias falsas que hoje chamamos de fake News,
sem contar com os ataques contra o sistema eleitoral e as urnas eletrônicas
usadas nas eleições. Nesses últimos anos a democracia e o sistema eleitoral
foram fortemente atacados. Hoje a votação não é mais em cédulas. As novas
tecnologias chegaram, Carolina, e com elas as urnas eletrônicas. São mais
confiáveis e no mesmo dia ficamos sabendo o resultado.
Saca
essa Carolina, tem gente que agora, de uma hora para outra, passou a acreditar
que o nosso planeta é plano.
Mas,
como falei Carolina, o amor venceu o ódio.
Vivamos
plenamente esse verão que anuncia dias melhores, floridos e que possam nos
contagiar de esperarçar sonhos e alegrias.
Carolina,
sei que sua flor preferida é a rosa.
Lhe
envio o perfume das mais belas roseiras e termino essa carta, com uma das suas
poesias sobre a rosa.
No campo em que eu
repousar
Solitária e
tenebrosa
Eu vos peço para
adornar
O meu jazigo com
as rosas
As flores são
formosas
Aos olhos de um
poeta
Dentre todas são
as rosas
A minha flor
predileta
Se a afeiçoares
aos versos inocentes
Que deixo escritos
aqui
E quiseres
ofertar-me um presente
Dá-me as rosas que
pedi.
Agradeço-lhe com
fervor
Desde já o meu
obrigado
Se me levares esta
flor
No dia dos finados
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