Carta 3 - De escritora e poetisa andarilha à revolução chamada Carolina Maria de Jesus.
Olá
Carolina, tudo bem? Tenho mais notícias para compartilhar com você.
Essa
carta que lhe escrevo é para te contar como fiquei impactado com a sua história
de vida, com suas andarilhagens para realizar seu sonho de ser
escritora, com sua obra literária, e, principalmente com a leitura do seu
diário escrito em 1958. Isso me impactou como ser humano e como professor do
ensino superior, ministrando disciplinas para a licenciatura do curso de
Geografia e para o curso de Pedagogia; e também enquanto pesquisador na área da
Educação e da educação ambiental. Infelizmente, Carolina, só tive conhecimento
de sua pessoa e do seu diário há alguns anos. Pena que esse encontro não
ocorreu antes.
Fiquei
impressionado e pensando em tudo o que você escreveu lá, e na minha condição de
homem branco, um “ser universal”, e que estamos a todo tempo sendo
beneficiados, mesmo a nosso despeito, dos privilégios de uma sociedade
historicamente marcada pela colonização e pelas marcas da colonialidade, fruto
dos mais de trezentos anos de uma escravidão que se atualiza no racismo
estrutural, institucional, cotidiano, e, pelo racismo ambiental que você já
denunciava em seu diário.
Esse
papo de privilégios, que é tão sério para nossa sociedade, me fez lembrar daquela
poesia sua, publicada em 1958 no jornal Folha da Noite, e que escrevi na carta
que já te enviei.
Carolina,
ainda sobre essa questão do privilégio branco em nossa sociedade, você adoraria
conhecer a renomada psicóloga, professora, pesquisadora e escritora, Cida Bento.
Ela é pioneira sobre os estudos desse lugar de privilégio branco na nossa
sociedade, e no mundo todo. Na pesquisa que ela realizou, Carolina, ela
conseguiu ver que tem um modelo, um padrão, que diz quem pode ou não pode, quem
será contratado ou não, e que esse padrão se repete nas corporações, firmas,
instituições públicas e na vida cotidiana, funcionando como um acordo, uma
autopreservação que atende a interesses de grupos, perpetuando nesses espaços,
o predomínio de pessoas brancas.
Esse
fenômeno que você também escreve em seu diário e em poesias, a Cida Bento denomina
de “pacto da branquitude”. E ela mesma, enquanto mulher negra, vivenciou várias
situações quando se candidatava a um emprego, e, mesmo sabendo que era a pessoa
mais qualificada para o cargo, era sempre preterida. Gostaria de compartilhar
com você uma frase que ela destaca e escreve na contracapa do livro dela,
intitulado, O pacto da branquitude, publicado em 2022 pela editora
Companhia das Letras. “É evidente que os brancos não promovem reuniões secretas
às cinco da manhã para definir como vão manter seus privilégios e excluir os
negros. Mas é como se assim fosse.”
Hoje
eu consigo entender esse fenômeno olhando para minha própria trajetória, como
homem, branco, visto como sujeito universal, não racializado, que se beneficia
cotidianamente de privilégios, mesmo a meu despeito, nas diversas situações e
lugares da vida cotidiana. Essa condição de seres universais é uma das
“deformações” sobre os corpos brancos, herdadas da colonização e da escravidão.
É como se fosse um componente de autopreservação das pessoas brancas e não
racializadas, somado ao componente narcísico, que consideram “o diferente” como
ameaça ao “universal”, ao “padrão normal”, indicando por outro lado, o
preconceito, a representação deformada do outro, e, também, a forma como
reagimos a ele.
Carolina,
conhecer a pesquisa da professora Cida Bento e ler seu livro têm sido muito inspiradores
para que eu me veja no mundo reconhecendo-me nesse lugar de privilegiado,
levando-me a pensar nas seguintes questões apresentadas por Paulo Freire, nosso
patrono da educação: a favor de quem pesquiso? Contra o quem pesquiso? A favor
do quê pesquiso e contra o quê pesquiso?
São
questões que surgiram dessas leituras juntamente com um evento literário
intitulado, Uma revolução chamada Carolina[1],
transmitido pela internet e que fizeram para celebrarmos sua vida, obra e todo
o seu legado, juntamente com a vida, obra e todo o legado de outra intelectual
negra, a Lélia Gonzalez.
Vou
aproveitar, Carolina, para trazer um pouco desse evento literário e do que
rolou e do que vem rolando por aqui. É como você mesmo escreveu, ao se referir
aos seus vizinhos na época da favela do Canindé, “vocês me dão motivo”. (risos)
O
evento literário é a Flup, uma feira literária das periferias, Carolina.
Imagina isso acontecendo na sua época, que revolução seria, pois a proposta da
Flup é atuar nesses territórios que não têm acesso à literatura. É uma feira
que acontece no Rio de Janeiro, mas é internacional também. Carolina, seus
livros são um sucesso na Flup.
Eu
e minha esposa assistimos o evento pela televisão, pois devido a pandemia a
Flup foi realizada em plataformas digitais. Carolina, desculpe, mas é tanta
novidade que em outra carta explicarei essas coisas do nosso tempo tecnológico.
Essa foi a 9ª edição da Flup trazendo uma narrativa sobre os corpos vulneráveis,
os que desde sempre, como comentei anteriormente, são os mais afetados pelas
crises, sejam elas sanitárias, econômicas, ambientais, políticas ou culturais.
E a pandemia da covid-19 escancarou essa triste e vergonhosa realidade. Essa 9ª
edição também contou com a presença de intelectuais e ativistas indígenas,
denunciando as violações dos direitos dos povos indígenas, principalmente da
floresta Amazônica.
Foram
vários encontros contando com 52 ilustres presenças prestando suas
“mulheragens” à você e à Lélia Gonzalez, que é também uma grande inspiração
para nossas pesquisas em Educação Ambiental em áreas de manguezais,
principalmente para pensarmos no “pretuguês” falado e escrito pelos estudantes,
nos saberes dos estudantes e em suas leituras de mundo, como nos ensinou Paulo
Freire, na juventude, na mulher negra no Brasil, na questão do desemprego, do
racismo e do sexismo; e, principalmente, como nos ensinou Lélia Gonzalez, para
pensarmos nossa formação latino-americana a partir de uma “amefricanidade”.
Carolina,
a Flup promoveu 15 encontros com mais de 4.900 espectadores e mais de 55.700
visualizações pela internet. Ficávamos aguardando o dia e a cada encontro, a
gente se maravilhava ao saber o quanto você inspira tanta gente, projetos,
ações, pesquisas, cultura, arte, literatura, escolas, estudantes, pesquisadoras
negras, movimentos sociais...A admiração por você só aumentou.
Eram
basicamente mulheres negras. Conheci e passei a admirar muitas intelectuais
negras que não tive a oportunidade de conhecer na minha formação
branca-eurocêntrica-patriarcal e que hoje são inspirações para as pesquisas que
realizamos no nosso grupo de pesquisa, para as práticas pedagógicas e de
extensão universitária, e, como aprendizado pessoal.
Antes
de citar alguns nomes que participaram, Carolina, o primeiro encontro foi com
sua filha. Isso mesmo. Pode acreditar. A Vera Eunice, que atualmente é poeta e
professora. Ela realizou o seu sonho de ter uma filha professora e hoje ela é a
responsável pelo seu legado literário. Ela e a escritora Conceição Evaristo
abriram o evento, com a mediação da jornalista Flavia Oliveira, especialista em
assuntos econômicos, indicadores socioeconômicos e comentarista da Globonews e
colonista da CBN e Rede Globo.
Foram
três blocos de conversas. No primeiro as convidadas comentaram sobre como elas identificam
e as relações delas com você e sua obra. No outro bloco conversaram sobre a sua
carreira, a obra atemporal que é seu diário revolucionário, o marco que você é
na literatura brasileira, feminina, negra e na literatura
feminina-negra-brasileira. No bloco final elas conversam sobre o Quarto de
Despejo na atualidade e no contexto da pandemia da covid-19.
Carolina,
a Vera Eunice estava muito emocionada. Me emociono também só de lembrar. Estava
vestindo um casaco preto com um vestido azul com estampas brancas. Confessou
que não conseguiu ler o seu diário até hoje de também memórias difíceis que
passaram na favela do Canindé.
Ao
comentar sobre a Carolina mãe lembrou que você era vista como uma pessoa
diferente na favela, gostava de valsa, de escrever, falava em versos e escrevia
no papel que achava na rua. Se virava para os filhos pudessem ter acesso ao
teatro, circo, cinema, não deixava os filhos faltarem aula em hipótese nenhuma,
lia e contava história, tocava violão e cantava. A Vera Eunice lembrou que um
dia você disse aos filhos, “hoje não tem nada para comer então vamos cantar”.
Você deve se lembrar. Lembrou que viu os seus manuscritos originais e que eles
estavam escritos em papel de embrulhar pão, que você usou para escrever o livro
Quarto de despejo. Lamentou que não pôde tocá-los pois estão no acervo da
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Que honra para uma escritora!
A
escritora Conceição Evaristo, muito emocionada por estar com a Vera Eunice,
começou dizendo que a primeira vez que ela encontrou a Vera Eunice foi numa
feira literária onde o Audálio Dantas também estava. Ela disse que a mãe dela,
depois de ler o Quarto de despejo, resolveu fazer um diário. Disse também que
conhece a Vera Eunice desde criança a partir do diário, e que tem uma imagem da
Carolina que para ela é emblemática. Uma foto sua, Carolina, com a Vera Eunice,
numa ponte de madeira. Essa foto a fez lembrar dela e da mãe dela, por ter sido
também uma mãe solo e que criou seus filhos com afetividade, cuidado e
responsabilidade, apesar das dificuldades vividas na favela em que nasceu, em
Belo Horizonte.
Para
(in)concluir essa carta, Carolina, um dos tantos legados que você nos deixou é
o desmantelamento da falsa ideia de que as mulheres negras e periféricas não
cuidam dos seus filhos com afetividade. Por isso, Carolina, e por muito mais, você
é uma referência como mulher, mãe, pela maternagem exercida em meio à fome,
pobreza e por condenar de forma insubmissa a condição desumana que viviam na
favela, e que ainda é a realidade de muitas “mulheres carolinas”.
Gratidão!
[1] Disponível em: < https://www.flup.net.br/post/uma-revolu%C3%A7%C3%A3o-chamada-carolina >. Acesso em 11 abr. 2023.
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