Carta - Domingo, 8 de janeiro de 2023: a branquitude não tem limites!
Carta
- Domingo, 8 de
janeiro de 2023: a branquitude não tem limites!
Carolina,
espero que esta carta chegue para ti num momento de alegria, aonde você
estiver. Digo isso por que foi um tanto quanto ultrajante para o povo
brasileiro e a democracia brasileira, o episódio ocorrido no dia 8 de janeiro,
na praça dos três poderes, em Brasília. Quisera eu, nunca ter que escrever
sobre o que aconteceu. Esse fatídico e vergonhoso episódio é mais um exemplo
daquilo que te escrevi sobre a Cida Bento, quando ela fala sobre o pacto
narcísico da branquitude. Lembrei do Paulo Freire também quando ele fala que
precisamos sim ter raiva, mas, uma raiva justa, que nos move a lutarmos contra
àqueles e àquelas que ameaçam a democracia, a cidadania.
Cenas
deploráveis. Criminosas. Lesa à pátria. Pessoas insanas tomadas pela fúria e
ódio. Gente com bomba no corpo, pronta para explodir. Gente destruindo,
vandalizando, agredindo policiais e os cavalos dos policiais. Foi uma tentativa
de golpe à democracia o que aconteceu naquele dia. Só que o que aconteceu não
começou ali, é um projeto de uma gente, Carolina, que não quer um governo que
cuide do povo, como você sempre defendeu.
Não
querem um governo que promova políticas públicas de saúde, educação e moradia.
Essa gente desumana, Carolina, foram responsáveis por contratar mais de cem
ônibus para viajarem em caravanas até Brasília, levando mais de 3.500 pessoas
de vários Estados do país. Essa gente não aceitou a vitória do Lula nas urnas,
Carolina.
Políticos
e empresários que apoiavam o ex-presidente financiaram essas caravanas. Essas
pessoas querem mesmo é permanecerem com seus privilégios seculares para
continuarem explorando e escravizando trabalhadores, acumulando patrimônio,
ajudando e bajulando seus aliados e semelhantes, sonegando e pagando pouco
imposto, ocupando cargos de poder, ditando as regras do mercado, da política e
da justiça.
Dentre
os defeitos da colonização e da escravidão sobre a elite branca, uma delas é o
narcisismo. São hábeis quando se trata de perpetuarem suas vaidades, heranças
roubadas de um passado colonial e escravocrata, opressores, exploradores.
Falsos moralistas, e, agora, depois desse dia 8, Carolina, veja só, podemos
agora incluir outra “qualidade” para esse grupo: extrema direta terrorista.
(Gargalhada irônica)
Nas
cartas anteriores trouxe algumas das minhas impressões sobre os últimos seis
anos. Comentei também sobre as notícias falsas que chamamos de fake news,
dos discursos de ódio, racistas, homofóbicos e misóginos de uma parcela da
população. Carolina, desde 2011, após elegermos a primeira presidenta do
Brasil, a Dilma Rousseff, que foi nossa presidenta por dois mandatos até 2016,
pelo Partido dos Trabalhadores, o PT, mesmo partido do Lula, desde essa época
que essa rapaziada, reaça e racista da casagrande, tem sentido seu narcisismo
abalado, seus sonos injustos (como escreve Conceição Evaristo) atrapalhados,
atrapalhando, portanto, a vida política e a democracia, pois, como diz um
conhecido meu, “branco não tem limite”.
Só
para você ter uma ideia, descobrimos pessoas que convivemos, umas muito
queridas e próximas, outras da própria família, mostrando para nós seus
posicionamentos reacionários, racistas, anti-vacinas e negacionistas. Pessoas
que preferiram não acreditarem na existência de uma pandemia que chegou a matar
mais de 3 mil pessoas por dia, só aqui no Brasil, e já matou mais 700 mil
pessoas desde março de 2020, quando o novocoronavirus aqui chegou, e cujo um
dos primeiros casos notificados foi uma mulher negra e emprega doméstica, que
foi contaminada pelos seus patrões ricos, que haviam retornado da Itália, onde
a pandemia se alastrou antes de chegar aqui.
Pois
bem, de lá pra cá a situação foi se inflamando e os ânimos esquentando, e, como
se não bastasse, o desgoverno anterior assolou a democracia. E como você mesmo
escreveu no seu diário, “a democracia está perdendo seus adeptos. No nosso paíz
tudo está enfraquecendo. O dinheiro é fraco. A democracia é fraca e os político
fraquíssimos”.[1]
E
foi assim que a coisa rolava por aqui. Por isso aquele esperançar por
dias melhores que escrevi nas cartas. Por isso também que estamos festejando e
virando a página de um tempo, que ficou marcado pelos ataques aos diretos
humanos, por uma gestão catastrófica e genocida durante a pandemia, pela triste
e revoltante volta do país ao mapa da fome, pela precarização do trabalho, a
descredibilização e deslegitimação das instituições brasileiras, pela tentativa
de acabar com a autonomia financeira das universidades, por incentivarem o
desmatamento, o agronegócio e o garimpo ilegal em territórios indígenas, a
partir do afrouxamento das políticas de preservação ambiental; e, de um governo
declaradamente averso à cultura, à ciência, que dissemina ódio e criminaliza os
movimentos sociais.
Não
à toa que essa gente tem sido chamada de terroristas, golpistas,
neoconservadores, reacionários. Gente sem limites, capazes de literalmente
defecar sobre a mesa de um Tribunal Federal de Justiça, depredar prédios
públicos, relíquias e obras de arte de estimado valor artístico, histórico e
cultural.
Carolina,
essas cartas iniciais foram para você ter uma ideia da nossa realidade nesses
últimos anos e com a pandemia. Muita coisa mudou, como é o caso de que somos
uma sociedade tecnológica, conectada no mundo a partir de engenhocas
eletrônicas. Essa coisa de escrever carta é algo que caiu em desuso. Nos
comunicamos diariamente através de aplicativos de mensagens. A gente escreve a
mensagem diferente como você fazia, com máquina de escrever. Escrevemos
utilizando computador e telefone móvel (celulares e smartphones e tablets) que
envia a mensagem para satélites, que se encarregam de nos conectar com outras
pessoas em qualquer lugar do mundo. Só que, infelizmente, apesar de todo avanço
tecnológico, muitas pessoas não tem acesso a ele, principalmente os mais
pobres. Ainda é caro a internet. A Dilma queria internet para todos como uma
forma das pessoas mais pobres terem oportunidades e acesso a direitos enquanto
cidadãos e cidadãs. Hoje os pobres tem ainda sua cidadania mutilada.
Carolina,
muita coisa mudou. As cidades, os hábitos das pessoas, o consumo, os gêneros
alimentícios, os carros, ônibus. Hoje, quem pode pagar e tem acesso a um
celular e internet consegue fazer chamada de telefone, tirar foto, enviar
mensagens de voz, programar despertador, fazer reunião com grupo de pessoas,
enviar filmes, figurinhas, músicas, tirar fotos, fazer vídeos, fazer transações
bancárias, enviar e receber dinheiro, e muito mais...É mole!
Mesmo
assim, Carolina, ainda mantemos a herança de uma cultura colonizadora e dos
mais de 350 anos de escravidão. E você mesmo já escreveu muito sobre isso e
sobre suas predileções aos escritores e poetas abolicionistas. Em 13 de maio de
1958 você escreveu, “E assim no dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra a
escravatura atual – a fome”.
No
dia 28 de maio de 1959 você também escreve, “...A vida é igual um livro. Só
depois de ter lido é que sabemos o que encerra. E nós quando estamos no fim da
vida é que sabemos como a nossa vida decorreu. A minha, até aqui, tem sido
preta. Preta é a minha pele. Preto é o lugar onde eu moro”.
Lamento
que essas deformações da elite branca são ainda um obstáculo, uma pedra difícil
de remover. Tais deformações sustentam ainda uma sociedade escravocrata com a
colonialidade cotidiana e a cultura heteronormativa capitalista eurocêntrica e
de supremacia branca, muito presente em nossos imaginários, nas relações
subjetivas e cotidianas, nos campos de saber e de produção de conhecimentos,
nos espaços de decisão e de poder, nas escolas e universidades, nas relações
com as outras formas de vida, com os encantados, matas, rios, mares,
manguezais, e, no modo como lemos o mundo, marcado por uma narrativa a partir
do colonizador.
É
preciso sermos água e contornarmos as “pedras no caminho”. Quero te contar na
próxima carta, sobre um assunto que você escreveu e denunciou em seu diário que
é o acesso à água, esgoto, moradia, dignidade de vida.
Hoje,
22 de março, Carolina, é o Dia Mundial da água. Deixo aqui, para você, a
poesia, No meio do caminho deslizantes águas, da escritora Conceição
Evaristo, que se encantou pelo seu diário quando ainda era menina, e que a tem
como uma grande inspiração. Fiquei pensando num encontro entre vocês duas para
um café ou chá. Seria um acontecimento marcado por risadas, escrevivências
e poesias.
Seria
lindo.
No
meio do caminho: deslizantes águas
Ao
Drummond, com licença, pois sei das pedras e também das águas das Gerais
Da advertência de Carlos
faço moucos meus ouvidos
e sigo com lágrimas-águas
contornando a tamanha
extensão da pedra.
E tantas são as deslizantes águas
E tantas são as águas deslizantes
E deslizantes são as tantas águas
E águas, as deslizantes, são tantas
que nas bordas da áspera rocha,
encontro um escorregadio
limo-caminho. Tenho passagem.
Sigo a Senhora das Águas Serenas,
a Senhora dos Prantos Profundos.
Sigo os passos, passo a passo
e fundo outro caminho.
Sigo os passos.
Passo a passo.
Sigo e passo.
As águas passam,
e as pedras ficam...
Conceição Evaristo
Poemas da recordação e outros
movimentos.
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